quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Nós Pós realiza encontro na sorveteria Santo Doce

Na última 5ª feira, dia 22 de Janeiro, em concorrido encontro, o movimento Nós Pós realizou encontro na sorveteria Santo Doce, nos Aflitos, com a participação dos escritores Felipe Jr., José Terra, Yugo Taroo, Gerusa Leal e Mariane Bigio.
Acesse os textos lidos durante o evento, no blog do Nós Pós, na lista de links ao lado esquerdo desta página.

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Nota veiculada na edição de 25 de janeiro do informativo A voz do Escritor, da União Brasileira de Escritores, Seção Pernambuco.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Rabanadas

Desceu do ônibus e atravessou a rua. Era uma tarde quente. Nem percebeu que estava parado em frente da casa. Ouviu a voz da mulher chamando pelo filho. Já fazia tanto tempo. Baixou a cabeça, virou-se para seguir seu caminho e parou outra vez.

Naquele dia o cachorro perseguiu o menino latindo. Apanhou o primeiro objeto que a mão alcançou. Mas não precisou usar, o garoto havia subido na árvore onde acabara de pendurar a gambiarra, arrastando no tombo parte da fiação e fazendo várias lâmpadas coloridas espatifarem-se no chão.


- Droga. Vai cortar o pé, infeliz.

O moleque correu para dentro de casa.

A mulher está de pé junto ao fogão, os cabelos presos por um lenço. Parece que só enxerga as panelas. Prepara o almoço mas já cortou o pão para as rabanadas.

Escuta o arrastar dos chinelos e vê uma blusa desbotada se aproximando. Ela sempre sabia quando ele chegava e vinha encontrá-lo no portão. Levantou a cabeça e olhou ao redor como se não a tivesse visto.

- Já vou abrir.

Deu um passo para o lado parou e olhou a mulher. A blusa desbotada sobre a saia larga de estampado florido também já desmaiado. Não acreditava em violência. Não devia ter feito aquilo.

Caminhava devagar, o rosto sem expressão como se até as rugas houvessem esquecido a própria história. É de estatura mediana mas os ombros arqueados a fazem menor embora a firmeza do olhar afaste qualquer impressão de fragilidade. Ele tenta se lembrar de como ela era e só consegue ver uma jovem numa foto amarelada de casamento. Uma jovem que parece nunca ter sido ela.

- Venha, entre.

Despregou-se do chão e passou para dentro do jardim. O rosto dela ganhara um aspecto definitivo feito o das esculturas no museu onde ele ficara circulando enquanto esperava que a tarde passasse e não desse mais tempo de ir. A primeira vez fora pedir que lhe perdoasse e se o enxotasse mal o visse isso não o surpreenderia.

Limpava os pés no capacho com os olhos entre o chão e a guirlanda verde com um sino dourado pendurada na porta.

- Entre.

Sentou-se à mesa no canto da sala enquanto ela, arrastando os pés, sumiu no corredor que dava para a cozinha de onde vinha o cheiro doce. Serviu-lhe duas e ocupou a cadeira em frente, calada, as mãos cruzadas sobre a mesa, olhando ele cortar pedaços da rabanada e levá-los à boca.

Quando acabou, ela levantou-se, apanhou a travessa com o restante do doce, o prato vazio e lentamente sumiu outra vez no corredor. Ele imagina que assim como na sala, no restante da casa permaneça tudo igual, os mesmos móveis, nos mesmos lugares, os mesmos quadros pendurados nos mesmos pregos nas mesmas paredes, a mesma árvore no quintal.

Nunca foram de conversar muito mas se diziam o indispensável e passavam um pelo outro sem evitarem se esbarrar. Naquele dia ela queimou-se na panela de feijão que se esparramou por todo o chão da cozinha. Ele havia entrado atrás do menino com o chinelo na mão e quando ela se abaixou para limpar ergueu-a pelo braço xingando-a de estúpida e perguntando e agora o que nós vamos almoçar?

Ficaram as marcas na pele alva do braço e ele saiu batendo a porta. Sem coragem de contar que fazia um mês que passava os dias perambulando pelos parques, igrejas, museus, depois de conferir mais um anúncio de emprego onde não se interessavam por seus serviços.

- Beba a água. Está gelada.

Quando chegou ela não estava e só uma semana depois recebeu o bilhete onde dizia que estava trabalhando na casa de uma família e o menino ficava com ela. No mesmo bilhete e pelo mesmo portador escreveu que voltasse para a casa, não a incomodaria.

Secou os lábios com as costas das mãos. Quando ela voltou da cozinha já estava de pé ao lado da porta. Caminhou atrás dela que fechou o portão e quando já voltava para dentro ele girou sobre os calcanhares. Ela parou.

- E o menino?

- O menino está bem.

Entrou na casa e ele atravessou a rua para apanhar o ônibus.
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Publicado na edição de 20 de dezembro da revista eletrônica Histórias Possíveis

Marilyn Lisa

alguma coisa há de vegetal
nos cachos repolhudos dos teus cabelos
nos teus lábios monroe
no teu sorriso lisa

alguma coisa há de espectral
no tom tofu da tua pele
no rosa macerado do teu rosto
no sépia desbotado em tuas vestes

alguma coisa há de surreal
nos traços comestíveis do teu rosto
e esse teu olhar de modo oposto
tem algo de ser sobrenatural

sábado, 17 de janeiro de 2009

A última refeição

Escutou os gritos agudos ouviu também e sentiu as vibrações dos golpes no assoalho de madeira. Gregório precipitava-se pelo corredor e quase se choca com Mara que saía afobada do gabinete. Disparou entre os dois, forçou a passagem por uma brecha na porta da cozinha, no mesmo pique escalou o muro e mergulhou na lixeira. Ali estaria seguro.

Tateou alguma coisa para matar a fome. O ventre aberto do pássaro oferecia-lhe o manjar das vísceras expostas e ainda mornas, com que se regalou.

Por instinto, contorceu-se, virando a cabeça para a porta. Alguma razão que não conseguia desvendar levava-o a reviver a última refeição. Ouviu Gregório gritar alguma coisa e seu coração se contraiu. Mas Inocêncio replicou com serenidade. A voz suave devolveu-o ao relativo conforto do devaneio com o último jantar.

Pendia, de cabeça para baixo, seguro, atado pelos membros inferiores. A vertigem da rápida descida, misturada à dor aguda da queimadura. Já não era uma sensação nova. Não o apavorava mais tanto. Mesmo assim, sentiu-se miserável e infeliz como nunca. Se é que se poderia chamar de sentimento ao desfalecer que lhe percorria o corpo e ameaçava engolfar-lhe o cérebro.

O contato do instrumento frio trouxe-o de volta. Era tudo confuso. Agora explorava o baú que um dia encontrara aberto no gabinete. O brilho da lâmpada no teto refletia-se nos artefatos de metal e isso o fascinava. Uma sombra o alertou de que não estava mais só. Sentiu o toque da mão, ouviu o grito agudo e retesou-se pronto para fugir. Mas a gargalhada grave e cristalina, já tão familiar, o acalmou. Enquanto os passos, o choro e a risada se afastavam, aproveitou para escapar da armadilha.

Depois da refeição, gostava de se esgueirar pelos móveis. Lembrou-se daquele frasco em cima do aparador em que numa madrugada esbarrara enquanto fazia seu passeio exploratório. E do susto quando mais rápido do que imaginava a lâmpada se acendeu, flagrando-o desprotegido. Estudou cuidadosamente o ambiente em volta e mergulhou na gaveta das fotos.
Então novamente o calor do fogo. Havia compreendido que de nada adiantava, mas talvez por puro reflexo estorcia-se, guinchava. Grudava-lhe na pele o líquido morno e gosmento. Torturava-o a ardência nos pontos onde perdera os pelos.

O trecho roído na borda da foto que emoldurava o rosto pálido da moça não lhe afetava a beleza. Degustava-a despreocupada e lentamente. Cabelos negros presos em coque, ornados pela grinalda de flores miúdas, os olhos castanhos, grandes, profundos e tristes, foi a última imagem que seu cérebro reteve antes de tudo escurecer.

Já não se movia mais, mas ainda estava ali. O suficiente para sofrer, em algum lugar da já quase inexistente consciência, a dor mais lancinante. Era lenta e se prolongava, parecia não ter fim. Depois de algum tempo, chegava, aos ouvidos, apenas, o som de batidas, num bombo, gigantesco, e distante, o líquido morno, pingando, dentro do recipiente, sob sua cabeça.

Acabara-se a urgência. E a sensação de perigo. Já se esquecera do mundo quando sentiu outra vez o fogo lambendo-lhe o corpo. Não havia mais dor. Terminara a agonia. As imagens iam e vinham, em flashes, e foram se dissipando, virando sombra de sombra, até ficarem opacas e cinzas. Feito o pelo chamuscado.
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Texto publicado no caderno especial em homenagem a Machado de Assis, na coletânea Contos de Oficina 2008, organizada por Raimundo Carrero, lançada em 08 de novembro de 2008 na Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas – ano IV.

ex-finge

percorre as veredas do meu corpo
verás que ainda há parte do humano
que fui quando assim fingia ser

tateia com vagar todos os flancos
desse ser tão incomum igual a ti

de quatro talvez me descortines
de quatro animais encontras partes
à minha humanidade amalgamada

cabeça e seios de mulher
corpo de touro (ou de cão se assim preferes)
garras de leão asas de ave
e essa imensa cauda de dragão

não temas, amado, inda sou eu
a mesma que desconhecendo, amastes
e se duvidas de mim, olha no espelho
verás que, enfim, me decifrastes

Sonhando com cavaleiros andantes

Marta, me conta outra vez aquela história do carro que assombra as ruas da cidade em noites de lua nova, saindo do edifício-garagem abandonado, assustando os casais que namoram nos pátios de estacionamento, e dentro das casas e apartamentos, sobressalta as mulheres com o ronco do motor e as arrancadas que ecoam na solidão das madrugadas, acelera sobre a insônia das crianças e dos idosos, com o derrapar dos pneus no asfalto silencioso. Me conta, Marta, como a alma do motorista do homem se separou.

Pois bem, Leandro, vou te contar outra vez como foi que se passou. Mas espera um pouco, Marta, sei que há muito te conheço mas sempre esqueço quem és. Agora já não importa, Leandro, quem é que eu sou. Apenas ouve a história que há tanto tempo te encanta. O que eu vou te contar é mesmo a pura verdade, embora tudo que eu saiba é só por ouvir falar.

Dizem que o rapaz, naquela manhã, pulou da cama bem cedo, vestiu roupa de viagem, jogou nas costas a mochila, calçou os tênis novos e pôs a mala na mão; seu sorriso era um sol. Despediu-se então dos pais entrou no carro e partiu. Falam que estava noivo de moça em outra cidade e nesse dia viajava pra com ela se encontrar.

A moça o esperava também ansiosa e alegre, de casamento marcado, tudo pronto, era só ele chegar.

Mas numa curva da estrada, numa errada ultrapassagem o tal carro derrapou girou na pista três vezes capotou girou mais uma e desceu pelo barranco.

De madrugada, geava muito na serra por isso só no outro dia é que foi localizado, bem sentado ao volante, o cinto de segurança preso ainda no lugar. Falam que os motoristas do caminhão que o acharam, e os caras da perícia não conseguiam explicar as marcas de pneus que batiam com os do carro também no sentido oposto do fatídico acidente, subindo pelo barranco arrancando terra e grama e na pista prosseguindo na direção em que vinha.

Marta, mas quem será que seria aquela moça a quem veio procurar? Será que ela ainda vive? Será que ainda o espera? Será que algum dia os dois irão se encontrar?

Não sei, Leandro, só lembro de estar há tempos na janela do quarto do apartamento dos meus pais no oitavo andar quando o velho entrou bem sério, me abraçou, baixou os olhos, saiu sem nada dizer. Do que eu me lembro depois, só do vento nos cabelos, da sensação que voava e de estar aqui contigo em noites de lua nova te contando um vez mais essa porra dessa história.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

aquática

Navega-me,
que me faço mar.
Não para me singrares de velas enfunadas.
Teu deslizar há de fazer marolas
que hás de alisar docemente.
Eu crescerei em vagas impetuosas
e te farei soçobrar.
Mergulharás em mim e eu, maremoto.
Até que,
juntos,
na praia morna,
em branca espuma
morreremos.
Publicado em Pimenta rosa, coletânea de poemas e textos eróticos de 16 autoras pernambucanas - edição das autoras - esgotado.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Os brincos prateados

Arrumava os cabelos com as mãos onde quer que estivesse, sem precisar de espelho. Fizera isso vezes sem conta. A vida não contribuía para amenizar os traços.
Tivesse o cuidado de não dar moleza desde o início, não estava passando por tanta decepção. Sim, pode-se perder o controle do lance, ser trapaceada e levar uma rasteira. Dava lá as escorregadas dele, ela sabia, sempre tinha uma explicação você que é meu amor, ela precisava que a convencesse. Não era mais menina, ralando daquele jeito, chegando em casa à noite no bagaço. Em vez de chorar, devia era soltar foguete.
Retocou o batom, também sem espelho, contornando os lábios com precisão.
Calma. Tenho que ter calma. Adianta me descabelar? Por que não escutei a voz da razão? Teria percebido que era sorte demais para ser verdade. Tem cabimento acreditar que um rapagão daqueles ficasse com ela muito tempo? Uma tonta, é o que foi. Ainda por cima deixar de se cuidar para vestir ele com roupa de marca, fazer prestação pra financiar o carro usado que tanto queria e botar no nome dele, onde já se viu? A amiga alertou, e daí? E daí que para seu azar apaixonou-se. Toda a sensatez foi parar na lata do lixo. Na lata de lixo.
Enxugava as mãos no vestido, suadas feito quando era adolescente.
Isso pode acontecer com qualquer uma.
Andava de um lado para o outro na sala. Na imaginação o rosto do amante, cara lisa, barba feita, no meio do mundo.
Sabia quando estava chegando pelo barulho do elevador, ficava de pé olhando a porta, aguardando que ele abrisse. Entrava, pegava pela cintura, virava de costas, empurrava para o sofá e ali mesmo a possuía, ela de quatro. Como uma cadela.
Escurecia lá fora, o ar frio do inverno entrando pelo apartamento.
O cordão dourado com a letra M, que usava sempre, era fantasia, imitação barata. Único presente que lhe dera em três anos; bem mais vagabundo que o par de brincos prateados com pedrinhas brilhantes que encontrara na gaveta de cuecas e meias, por baixo de tudo, bem lá no fundo, comprado com o dinheiro dela para a outra: sacudiu na cara dele, aos gritos, como se isso resolvesse alguma coisa.
Ele negou, era surpresa, para comemorar a data em que se mudou para a casa dela, mas não faz mal, e adulou, e fez carinho, levou pra cama, e ela se acalmou. Colocou os brincos.
Dia seguinte fazia quatro anos, um sábado. Culpada por haver desconfiado dele, comprou dois metros de viscose à prestação, abriu a máquina de costura, pegou a tesoura grande para cortar a camisa. Com sorte estaria pronta antes que ele voltasse da pelada com os amigos.
Cedo ainda, nem prestou atenção no barulho do elevador abrindo. Tocaram a campainha, não podia ser ele. Deu de cara com a ninfeta dizendo para ela passar os brincos, que não engolia essa de ter paciência e abrir mão para uma velha enrugada, pelancuda, só porque ele tinha pena.
Bateu a porta, sentada na sala não escutava nada, nem os berros da outra de isso não vai ficar assim, até que tudo ficou silêncio, olhou ao redor, a máquina aberta, o tecido na mesa, devia ser intriga da garota, ele não ia dizer uma coisa dessas dela, de que jeito a outra sabia dos brincos?, dizia para si mesma que não era nada daquilo, haveria explicação, sempre tinha uma, a visão dele abraçado com a ninfeta, a voz dentro da cabeça sussurrando no ouvido da outra você é que é meu amor, imagina se tem comparação com aquela velha enrugada, pelancuda, é que ela é tão sozinha, tenho dó, paciência que vou dar um jeito.
Dar um jeito.
Na delegacia, arrumava os cabelos com as mãos, retocou o batom, se deixou conduzir para a cela. Com a roupa do corpo, de chinelos, usando os brincos prateados.

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O conto Os brincos prateados foi classificado em primeiro lugar entre os 10 melhores para compor o livro do Prêmio Maximiano Campos de Literatura 2006, selecionados pelo escritor, crítico e professor da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE Luis Carlos Monteiro. O conto foi publicado também na antologia Panorâmica do conto em Pernambuco, em 2007, e na edição de nº 23, de 4 de setembro de 2008, da revista eletrônica Histórias Possíveis.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Gaza

o dia terminava
e o poente, escurecendo o céu
não poupava às criaturas terrenas
a sede

apenas aumentava a escuridão
o silêncio entrecortado de gemidos

nos hospitais, nas ruas
o percorrer dos ásperos caminhos
e das lastimosas visões
que as retinas
mesmo na escuridão
insistiam em exibir

divididos em três
invocamos os deuses
as musas
os homens
mas não nos chegam alimentos
remédios
sequer livros ou alaúdes
onde mitigar ou cantar nossa dor

nossas crianças já não dormem
o sono dos inocentes

wall-eribu

Sol na moleira, sacos de lixo, cheiro de fome. Dois pacotes de macarrão, dois pacotes, inteirinhos. Caruncho a gente bota no sol e eles fogem.
Ninguém por perto a ressaca da virada de ano deixou todo mundo jiboiando, de fome ou barriga cheia, em sombra de árvore, de teto de papelão ou de cachaça.
Deus ajuda quem cedo madruga é tudo nosso.
Uma pia, meu Deus, uma pia. Tá rachada mas a gente cola com o resto de durepóxi que encontramos na lixeira do prédio de luxo semana passada e tá limpeza. Uma pia, meu deus, só falta a torneira. O lixão há de prover.
Remexo restos de rosas todas tão frescas ainda. Aquela garrafa de cidra dá um bom vaso. Flores pra alegrar o barraco.
Preciso achar outro par de meias vermelhas. Essas são da última vez que vi Paris, não dá mais pra remendar.

Um jornal inda no plástico, que maravilha. Bancário surta, foge de manicômio e vira mendigo.