quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Um cochilo depois do jantar

Destacando meu texto publicado na Edição de Natal da revista eletrônica Histórias Possíveis (para quem não conseguiu, para chegar aos textos, não só o meu, mas o de cada colaborador, basta clicar no link título do texto, ao lado do nome do colaborador).



Um cochilo depois do jantar

By historiaspossiveis
Gerusa Leal

Quando parava o que estava fazendo, percebia o quanto o apartamento era grande e silencioso àquela hora da tarde. Boa parte da arrumação já estava terminada. Encaixou Autran Dourado entre Augusto dos Anjos e Balzac e imaginou o que pensariam os autores, das improváveis companhias a que a vizinhança os obrigava. Depois ajoelhou no chão e acabou de organizar a prateleira de baixo da última estante. O marido entrava, sentava do lado e começava a pegar um livro, depois outro, depois outro e ao devolvê-los ia trocando as posições. Até que ela, com fingida raiva, atirava nele o exemplar que ainda tivesse nas mãos para fazê-lo parar. Ele saltava, se esquivando, roubava-lhe os que ainda não haviam sido recolocados, ela interrompia a tarefa e ia curtir o companheiro.


E o mundo continuava a girar, independente dela. Queria dançar. Colocou o CD, e ao som de don’t let me be misunderstood deixou que o Santa Esmeralda conduzisse braços, pernas, cabeça, o corpo inteiro em coreografias improvisadas onde só o que importava era se mexer no ritmo da música. A filha e as amigas chegavam, ela congelava a performance, disfarçava, passava a mão por cima de um móvel para conferir se não havia poeira depositada.


Amanhã a poeira voltaria a se depositar, feito todos os dias. Mas não importava. Não a incomodaria mais. O telefone tocou. Desligou o som e foi atender. Era a filha. Para desejar que a noite fosse de paz. A filha sempre teve a arte de conseguir inibi-la quando estava fazendo algo prazeroso. Tinha um sexto sentido para isso. Guardou o CD e acabou de colocar o último livro na prateleira.


Não havia pena, nem raiva. Queria tudo perfeito. Forrou a toalha branca, pôs o prato, o talher, a taça, o arranjo de flores. Viu a agenda aberta sobre a mesa de centro, nenhum compromisso anotado para o dia seguinte. Fechou, colocou a caneta ao lado. Passou na cozinha, conferiu o assado, foi para o chuveiro.


O órgão tocava o oratório de Natal de Bach. Ainda conseguiu lugar, mas nas últimas filas. Não fazia mal. A acústica da igreja era excelente. Mergulhou naquele oceano de sons, vibrações, odor de incenso e de cera derretida em pingos que escorriam feito lágrimas, numa solidão congelada de parafina. Lembrou que não havia trocado o lençol da cama. Deixou para lá. Talvez ninguém passasse da sala mesmo. Pelo menos nas primeiras horas.


Degustava o tender saboreando o contraste do salgado da carne e o agridoce do molho com cereja. O vinho aquecia por dentro. A luz das velas era suave e oscilante. Feito a da televisão no escuro da sala.


Checou mais uma vez a gaveta dos documentos, todos os importantes estavam ali. Não queria dificultar a vida de ninguém. Sentou no sofá e começou a ver o especial, recostada nas almofadas.


A faxineira ligou para a filha da patroa. Não era notícia que ninguém gostasse de dar, principalmente numa manhã de Natal. Mas o que é que ela podia fazer? Pelo menos a patroa já estava no seu melhor vestido, o par de sapatos preferido, bem penteada e maquiada. Ela nunca havia gostado de dar trabalho a ninguém.


Era um bom emprego, ia sentir falta. Da patroa também, é claro.