quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Anacy

Conto de Gerusa leal em Escritores & Tal http://www.escritoresetal.com.br/main/textos/conto-textos/

Quando vi o carro de minha filha mais velha estacionado em frente ao prédio, caí na real. Tinha esquecido de todo que saí mais cedo exato porque havíamos combinado sair juntas para jantar. Entrei no prédio e sentei na mureta do estacionamento. Só então percebi o carro da segunda filha parado na vaga. Amanda não suportava que alguém faltasse a um compromisso com ela sem desmarcar. Rita era a preocupação personificada.

Eu só queria chegar em casa, tomar um banho, deitar, pôr uma música romântica e continuar curtindo a noite. Por sorte Ricardo morava a umas poucas quadras antes e o convenci de que chegaria bem em casa sozinha. No final meu sexto sentido funcionou outra vez. Teria sido constrangedor ele presenciar minhas filhas me dando bronca. Arrumei os cabelos com as mãos, respirei fundo e entrei no elevador.

Todas as luzes do apartamento acesas, Amanda no celular, Rita no telefone fixo. Assim que me viram, desligaram os aparelhos sincronizadamente e avançaram em minha direção.

- Graças a Deus, já estava ligando para a polícia. Por que seu celular está sempre fora de área ou desligado?
Já cansei de lhe dizer pra se livrar desse dinossauro e comprar um celular decente. Mas enfim, por que demorou tanto? Por onde andava?

Amanda me olhava sem dizer palavra.

- Como vêem estou viva. Para quê esse escarcéu todo? E quantas perguntas, Rita, parece uma metralhadora.

O efeito da brincadeira foi paradoxal. Rita começou a chorar se lamuriando e me acusava de insensível. Agora um mecanismo automático que eu conhecia bem havia sido acionado e uma queixa puxava uma crítica, que puxava uma queixa, e a não ser por um colapso o fenômeno só parava quando descarregavam as baterias. Olhei para Amanda.

- Tudo bem?

Ela enfrentou meu olhar num silêncio mais eloqüente que a verborréia de Rita. Meu coração se apertava. Inesperadamente Amanda desatou também a chorar.

- Você sabia que havíamos combinado de ir jantar. Custava ter ligado dando sinal de vida?

- Esqueci, desculpe, me envolvi com uma coisa e outra e esqueci.

- Ligamos para a casa e os celulares de todas as suas amigas e só o conseguimos apurar que às oito da noite você pegou uma carona para casa com uma antiga colega de faculdade, mas que ninguém tinha visto nem sabia quem era. E já são onze horas. O que queria que pensássemos?

Não tinha feito nada errado além de esquecer do compromisso com Amanda mas me sentia mais culpada que o normal. Eu com medo de ser castigada por minhas filhas por haver chegado em casa mais tarde sem ter avisado antes?

- Saí daqui cedo para encontrar com a turma no baile da terceira idade, como faço toda quarta-feira, vocês sabem. Quando já estava de saída encontrei uma velha amiga que não via há anos, está morando no nosso bairro e me convidou para voltarmos juntas, pôr a conversa em dia. Depois de um tempo deu fome, paramos para comer uma pizza e tomar um chope e continuamos caminhando para casa, fazer a digestão.

- Andando? Só as duas? Do clube até aqui? Está mesmo senil. Já ouviu falar em assaltantes, marginais, latrocínio?

Já quase perdendo a paciência, tentava recuperar a autoridade materna.

- Rita, não é tão longe assim. É bem iluminado e até essa hora ainda tinha muita gente nas ruas. Sinto ter assustado você e obrigada pela preocupação, por ter vindo até aqui. Amanda, desculpe mais uma vez o esquecimento, não foi proposital, aconteceu.

- Eu já tinha combinado uma saída com amigos quando Amanda ligou. Ela só perguntou se você estava comigo, não queria alarmar, nem disse que estava preocupada, mas eu senti no tom de voz.

- Desculpem.

- Acabei cancelando a saída para vir aqui.

- Sinto muito.

Amanda pegou a bolsa e as chaves do carro. Rita fez o mesmo. Já da porta, virou e sorriu.

- Tá, o que importa é que você está aqui e bem. Mas enfim quem é essa velha amiga? Nós conhecemos?

Já mais tranqüila, considerando a crise superada, ri.

- Na verdade não foi uma amiga. Foi um amigo – disse meio sem graça.

Ela acentuou o sorriso.

- Hum, um amigo…

E numa demonstração rara de controle, transformou o sorriso na cara mais fechada que eu já vira nela.

- É pior do que eu imaginava – Amanda falou por ela.

Suspirei arrependida de ter dito a verdade. Aquele não era mesmo o momento para isso. Só porque eu achara a coisa mais gostosa do mundo, depois de anos pensando que não existia mais para os homens, passar algumas horas com alguém gentil, confiável e atraente, e porque havia chegado em casa flutuando em nuvens e querendo que o tempo parasse, isso não queria dizer que minhas filhas ficariam felizes por mim, muito menos que veriam as coisas pelo mesmo ângulo.

As duas largaram as bolsas e sentou uma de cada lado, no sofá, me cercando.

- Eu não acredito – era Amanda com aquele seu jeito de ser tão explícita nas entrelinhas.

- Vá para casa. Seu marido já deve estar sentindo sua falta. Vá você também, Rita. Garanto que ainda não alimentou seu gato hoje. Sinto que não é um bom momento para levarmos avante esse assunto. Não há clima.

- Não, mamãe, agora queremos saber.

- Muito bem então. Encontrei com Ricardo, um antigo colega de universidade, no clube, conversamos, viemos para casa caminhando e na metade do percurso comemos uma pizza juntos. Foi isso.

- Saiu para jantar com um cara que encontrou num baile da terceira idade pela primeira vez desde a faculdade?

Incrível. Parecia até que eu tinha ido a um motel com um perfeito estranho, no primeiro encontro. Será que elas não percebiam que eu não era uma garotinha inexperiente e indefesa? Por que tanto barulho?

- Sim, foi isso mesmo, qual o problema?

- Você não sabe? Depois reclama quando a gente diz que não tem mais idade para estar saindo por aí sozinha. Por que não pergunta a qualquer adolescente? Sua filha mais nova, por exemplo. Pena que ela tenha ido dormir na casa de uma amiga. Diria com toda a clareza qual é o problema. Qualquer adolescente sabe. Com a diferença que você não é mais uma adolescente.

Elas percebiam. Não era esse então o problema.

- Além do que você não tem mais idade para essas coisas, mãe.

Estava enganada. Era esse, exatamente, o problema. E que tais coisas eu fizera para não ter mais idade para elas? Sair com um amigo? Tomar um chope? Conversar?

- Chega, meninas. Vão para casa antes que eu diga algo de que me arrependa amanhã.

Rita me deu um beijo e se despediu. Amanda saiu sem me olhar nem abrir a boca.

Tranquei a porta e sentei um instante tentando pôr as idéias e os sentimentos no lugar. Tanto tempo havia se passado desde a última vez que eu vira Ricardo. E hoje descobrir que ele já é meu vizinho há alguns anos.
Provavelmente passaria mais uma eternidade, quem sabe o resto da vida sem vê-lo. Quanta bobagem.

Pena que o embate com as meninas me deixou tão sóbria e lúcida que o restinho de encantamento que pretendia curtir até pegar no sono evaporou como por mágica. Lembrei que tinha sessenta anos e pelo menos três quilos de sobra na cintura que já desistira de tentar fazer sumir.

Embora de vez em quando me dessem preocupações, me sobrecarregassem ou me magoassem eu adorava meus filhos. E os netos então nem se fala, eram meus tesouros.

Apaguei a luz da sala e fui pelo corredor direto para a cama. Sonhei a noite inteira com Ricardo. Eu vestia um vestido lindo e esvoaçante e ele, em um terno claro, camisa sem gravata, mais elegante do que nunca, me tirava para dançar. A lua clareava a pista, que era no meio de um jardim ao ar livre e onde dançávamos a sós. Não sei de onde vinha a música nem me preocupou isso no sonho. Mas era maravilhosa. Ele pôs a mão em meu rosto, sorriu e quando pensei que ia me beijar, disse: boa noite, Anacy, e eu acordei com o toque do interfone.

- Um rapaz deixou uma encomenda para a senhora.

- Acordei agora, seu Manoel, não dava para colocar no elevador e eu pego aqui?

- Agorinha mesmo.

Quando a porta do elevador abriu pensei que ainda estava sonhando. No carpete o mais lindo arranjo de flores que eu já vira. As pernas tremeram. Peguei o arranjo antes que o elevador fechasse outra vez.

Entrei no apartamento e sentei com as flores no colo, apatetada. Havia um envelope, e dentro um cartão. Podia até ser sonho mas não era engano, era eu mesma a destinatária das flores.

Anacy,
Adorei nosso passeio ontem.
Quer jantar comigo amanhã?
Ricardo

Comecei a sorrir como se tivesse esperado por aquele convite a vida inteira. De repente caí na real outra vez. E as meninas? Ah, azar. Depois eu pensava nesse detalhe.

Acabava de colocar as flores no vaso quando o telefone tocou.

- Alô?
- Gostou das flores?
- São lindas.
- Apanho você em casa?
- Não, não, é que há uns desdobramentos, depois, pessoalmente, eu explico.
- Então o que sugere?
- Nos encontramos na pizzaria de ontem. Lá resolvemos onde jantar.
- Às oito?
- Às oito.

Tinha uma voz ainda mais sensual ao telefone.

Telefone. Liguei correndo para Graça, que ria de toda a história, e mais ainda quando lhe pedi que se algum de meus filhos ligasse querendo saber onde eu andava dissesse que eu tinha ido ao banheiro, comprar cigarros, qualquer coisa. E desse um toque para o meu celular.

- Acho isso meio absurdo, afinal você é adulta, mas se é assim que deseja serei seu álibi. Se vocês forem discretos eles nunca saberão. Afinal é apenas um jantar e pode ficar só nisso não é? Ou você tem planos mais ousados? – e riu.

- Pode parar de zoar. É só isso mesmo. A não ser que acabe não sendo – sorri. Então estamos combinadas.

Sentei junto à janela e comecei a cuidar das flores na jardineira. Quanto tempo andei tão só sem perceber.
Como pude deixar que me fizessem de velhinha quando ainda não era? Seria algum dia? Por que deixei que me convencessem de que com a separação e a idade minha vida útil havia acabado? E a não ser pela morte gente tem prazo de validade? Foi muito bom ter reencontrado Ricardo, ia ser ótimo jantar com ele e o que mais o destino nos reservasse. Mas se descobrisse agora que ele tinha sido apenas só um sonho, fantasia, o mal já estava feito.

No mercado conversei leve com a moça do caixa e as outras pessoas na fila. Comprei um batom novo.
Passei no salão, cortei e pintei o cabelo, ousei um tom e um corte diferentes. Dei metade de minhas roupas, comecei a usar outros modelos e cores que antes jamais ousaria. Minha vida não cheira mais a naftalina. Não há mais sonhos proibidos. Alguns são mais difíceis de alcançar, mas é só planejar com cuidado e paciência.
Voltei a cantar no chuveiro.

Meus filhos acabaram se acostumando a que eu não desse mais muita satisfação da minha vida. Assim como eles não me dão da deles. Deixei de temer críticas e opiniões. São só críticas e opiniões. Eles têm o direito e o dever de fazê-las. E eu as considero importantes, afinal eles me amam. Ouço e avalio a quais devo dar ouvidos. Mas as decisões, certas ou erradas, são minhas.

Passaram três anos daquele segundo jantar. Eu e Ricardo fizemos um trato. Não iríamos morrer lentamente um sufocando o outro. Mais ou menos uma vez por mês recebo um arranjo de flores com um cartão:

Anacy,
Quer jantar comigo amanhã?
Ricardo

Até quando? Quem se importa?