domingo, 21 de outubro de 2012

Gerusa Leal - Projeto vida e obra de Raimundo Carrero



Alvarenga - a construção do personagem na obra de Raimundo Carrero
Gerusa Leal

Uma corrente mais técnica dos estudiosos da ficção considera que a literatura é jogo de palavras, de movimentos interiores, de metáforas, de símbolos, o personagem seria apenas um desses elementos. Para outra corrente, o problema central da ficção é o personagem.  Não existe história sem personagem. Mas o romance é também uma experiência de linguagem escrita, se realiza no texto.
Com esses pressupostos em vista, a idéia seria refletir sobre a construção do personagem, pensar em como ele nasce e se desenvolve. Tomamos Alvarenga, nascido em Maçã Agreste e protagonista de Seria uma Sombria Noite secreta para ilustrar esse aspecto na obra de Raimundo Carrero. Sem pretensões de defender teses, de escrever artigos, ensaios, apenas partilhando impressões sobre a criação do personagem escolhido, que o texto de Carrero provoca em mim.
Sobre Alvarenga, em sua gênese, já no texto impresso e publicado, penso num rosto na sombra, que é como Carrero diz que um personagem nasce. Nasce sem nome, porque o autor ainda está procurando a voz narrativa. Para que tenha uma voz, necessita de uma identidade. E o nome, que pode até não vir, que pode mudar ao longo do processo criativo, comporia, assim, uma identidade psicológica.
A primeira vez que entrei em contato com Alvarenga foi na leitura de Maçã Agreste, romance publicado em 1989. Lá, ocorreu-me que das sombras de Quincas Borba pode ter começado a se esboçar o rosto do personagem. O romance de Machado de Assis conta a história de Rubião, ingênuo rapaz que se torna discípulo e herdeiro do filósofo Quincas Borba, personagem do romance anterior, Memórias Póstumas de Brás Cubas e que, sendo enganado por seu amigo capitalista Cristiano e sua esposa Sofia, paixão de Rubião, vive na pele todo o fundamento teórico do Humanitismo, filosofia fictícia daquele filósofo.
Mas o que teria Alvarenga a ver com essa história toda? Em Maçã Agreste, a personagem Sofia - assim como Sofia é a esposa de Cristiano no romance de Machado -, lá na página 52, “Dirigiu-se ao atendente e pediu o romance Quincas Borba, de Machado de Assis.”
(...)
 Agora estava disposta a lê-lo. Refeita, sentia que não teria medo das palavras.
‘Rubião fitava a enseada – eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa. Cotejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista’.” (pág. 53 de Maçã Agreste).
Com a referência, pareceu-me, Carrero prepara o surgimento do personagem que, na página seguinte (54), começa a chegar como uma espécie de pressentimento da presença nascente, do ponto de vista da personagem Sofia: “Foi quando Sofia observou que, junto à porta, estava um homem”.
Assim, nesse momento um mero coadjuvante, um rosto nas sombras, um homem. Apenas um homem. Que vai aos poucos ganhando contornos: “Não exatamente um homem, desses que parecem afoitos e que nunca atravessam a meia-idade, acompanhantes ousados de prostitutas, mas um velho.” Alvarenga começa a ser criado, de maneira indireta, através do olhar de Sofia. Aqui já uma leve alusão, ainda velada, à relação entre Alvarenga e Raquel: “acompanhantes ousados de prostitutas” que só no desenvolvimento da narrativa vai sendo desvendada.
O personagem, agora, não é mais apenas um homem, é o acompanhante de uma prostituta e, a essa altura de sua construção enquanto personagem, um velho: “Rigorosamente, um velho. Vestido num terno azul, sem gravata, um bigode ralo embranquecido, cabelos negros pintados, e bem penteados, gordo.”
Alvarenga vai se delineando. Aos poucos vai começando a sair das sombras: “As rugas, apesar de tudo podia ver as rugas, não escondiam a velhice.” É o olhar de Sofia construindo, com delicadeza, a personagem, dando algumas leves pinceladas de um perfil físico que já deixam transparecer um pouco do perfil psicológico do homem.
Na página 55, Sofia “Lembrou-se do romance de Machado de Assis, e era como se todos ali tivessem os olhos e os sentimentos de Rubião tentando decifrá-la”.
As reflexões de Sofia sobre Rubião ficam em suspenso enquanto testemunha o depoimento denso e a reação de Jeremias à revelação de Raquel de que resolveu ser prostituta. Até agora o personagem veio sendo revelado, apresentado, por características físicas, um perfil estático, quase um retrato, pintado por Sofia. É a idade, são as roupas, os traços fisionômicos.
Lá para a página 57, Sofia volta-se outra vez ao velho e, sob seu olhar, o personagem começa a se movimentar, a ganhar vida: “O rapaz [Jeremias, irmão de Raquel, amigo de Sofia] passou a mão nos olhos, enxugando o suor que caía da testa. Repetiu o gesto, e o sorriso não se afastava dos lábios. O que, aliás, contrastava com a face do velho que olhava um e outro, um tanto atônito, às vezes também querendo sorrir, mascarado pela inquietação. Sentado, as mãos sobre as coxas, baixava sempre a cabeça para beber um gole de cerveja.”
Apenas um olhar, uma intenção de sorriso, uma inquietação, um gesto característico, mas já se movimenta. As ações são narradas representando comportamentos. Não são elementos isolados. O perfil psicológico vai sendo desenhado.
Mais adiante, à página 59, diante da revelação de Raquel: - “Quero ser prostituta” -, a narrativa volta mais uma vez o olhar ao velho: “Quatro árvores estariam mais consoladas pelo vento. De todos, porém, quem revelava absoluto abatimento era o velho. Enterrava a cabeça no peito, as mãos cruzadas entre as pernas abertas, e permanecia imóvel, uma imobilidade insólita, que significava, ao mesmo tempo, presença e distância, um objeto, ou a aproximação mais verdadeira da dor e da compreensão, um ser vivo.”
O narrador – nesse momento, Sofia – coloca o leitor agora mais em contato também com os sentimentos de Alvarenga, expressos nos gestos. Um ser vivo. As palavras começam a se mover, o texto começa a traçar, embora ainda de maneira possivelmente confusa para o leitor, a gênese do personagem que, aqui, já pulsa. Já sofre. Já é. Já existe.
Não se ouviam ruídos nem a música dos cabarés. Mas o velho, saindo do torpor em que se encontrava, num gesto que lembrou o som desafinado e grotesco de um instrumento no meio de uma orquestra, meteu a mão no prato e retirou um grande pedaço de queijo, enchendo a boca desajeitada e gulosamente. Mastigava com apetite e força, deformando a boca. Não esperou sequer que a comida descesse pela garganta, Tomou o copo de cerveja e bebeu.”
É o próprio personagem, embora ainda sob o olhar de Sofia, lançado agora ao centro da cena, do palco, quem vai, no foco da luz, em câmera fechada, em close, dando ordem ao disforme, ao caótico que caracteriza a gênese de Alvarenga. Vai “saindo do torpor”. Humanizando-se, até come; e seus gestos o vão construindo.
As frases vão se apresentando, depois os movimentos iniciais levam ao nome.
“- Rubião tem fome.
A gargalhada, imensa gargalhada de Jeremias, espantou. Ele ouvia a frase de Sofia, seguida de um arroto do velho. Sem entender a alusão ao livro de Machado, Raquel olhou estranhamente para os dois. Mas, enquanto o velho enchia, outra vez, o copo de cerveja, deixou o pequeno sorriso encantar os lábios. De certa forma, gostara da expressão.
- Rubião sabe fazer coisas.
Disse e aproximou-se do companheiro. Sofia olhou de viés para Jeremias, lembrando-se de Rubião, Cristiano Palha, Freitas e Carlos Maria e, sobretudo, da outra Sofia [a de Quincas Borba]. Que haveria ela de pensar num instante daquele? E o velho continuava, vorazmente, a devorar o queijo e a beber a cerveja.
- Vamos, Rubião, mostre a eles o que sabe fazer.
Ele levantou o rosto gordo, com o bigode sujo de espumas, imitando um sorriso, limpando os lábios com a língua:
- Você fala comigo?
Raquel colocou a mão no seu ombro:
- Com quem haveria de ser?
- Meu nome é Alvarenga. Por que me chamam assim?
Aqui fica a pergunta, lançada ao ar, para os demais personagens - e para o leitor. Nesse trecho, também, a relação do personagem com Raquel vai se modificando ao olhar do leitor. Não mais apenas um acompanhante ousado de prostitutas. Mas um companheiro de Raquel.
O narrador oculto, organizador vai, por meio do diálogo, fazendo um uso sofisticado das marcações para ir acrescentando traços ao perfil físico do personagem - dando-lhe um bigode, por exemplo -, construindo sua identidade. É o próprio personagem quem afirma seu nome, começando, assim, a destacar-se das sombras do Rubião, de Quincas Borba, e se apresentando como um outro, que os demais personagens ainda estão começando a conhecer – assim como o leitor.
É Raquel quem, à página 60, joga Alvarenga outra vez, dessa vez quase literalmente, no palco, e lhe pede que se apresente, que se defina, saia da ambiguidade que os dois nomes criam:
“- Alvarenga ou Rubião, mostre a eles suas habilidades. O velho também riu, riu e repetiu a palavra nova duas ou três vezes, apenas para ele. Contou que vivia, sozinho, com um cachorro no quarto de pensão. Isto é, precisava escondê-lo porque a hospedeira não gostava de animais nos aposentos. Sobretudo um cachorro, que colocava em risco a saúde dos outros hóspedes. O bicho era bem-comportado, não latia, não grunhia, obedecendo a todas as ordens do dono.”
Sofia e Jeremias contribuem também com seu olhar para ir plasmando Alvarenga para o leitor, de maneira indireta, o narrador colado ao ponto de vista dos personagens:
“Enquanto ele falava, Raquel serviu mais uma cerveja e mais queijo, mesmo sabendo que estava perdendo sua própria alimentação. Sofia e Jeremias esqueceram o enfado, interessados na figura ali à frente, conversando e conversando, ganhando animação, mesmo que os gestos fossem deselegantes.”
As características do personagem vão sendo melhor definidas, ele vai “ganhando animação, mesmo que os gestos fossem deselegantes”. O “mesmo que”, aqui, me chega como recurso narrativo, para não lançar luz demais, não ofuscar o leitor, não tirar seu espaço de cúmplice na construção, pois o personagem ganha animação não “mesmo que” mas  “inclusive e principalmente” por seus gestos deselegantes.
Alvarenga já tem nome, perfil físico e o narrador, ainda de forma indireta, pelos olhares dos outros três personagens, vai estabelecendo também um perfil psicológico. Já não é uma idéia nebulosa, um velho, um companheiro de Raquel. Trata-se de Alvarenga. Um ser singular, único feito cada um de nós.
Outro trecho da narrativa, à página 61, coloca o leitor em contato com a gênese de gestos que vão caracterizar Alvarenga em Maçã Agreste, quando ainda é coadjuvante, e se aprofundar em Seria uma Sombria Noite Secreta, quando se transforma em protagonista. Trata-se da cena com o personagem fazendo a performance de como adestrava o cachorro com quem vivia no quarto de pensão:
“Alvarenga balançou a cabeça. O pobre [o cachorro] entendia, mas a princípio não mostrou habilidades. Queria que o bicho ficasse em pé nas patas traseiras, o focinho levantado. Começava aí o exercício. Demonstrava, faça assim e assim. Repetindo os gestos, um bailarino balofo, o velho caminhava nas pontas dos pés pelo quarto. Assim, faça assim, repetia. O animal não saía do lugar, espiando-o.”
(...)
Mesmo depois de rebeldia e persistência o cachorro conseguiu, ainda que canhestramente, andar nas patas traseiras. No entanto, para que ele ficasse com o focinho levantado, Alvarenga precisava oferecer-lhe um pedaço de carne, pendurando-a num cordão e, suspensa, obrigando-o a abocanhá-la.”
(...)
Raquel bateu com a mão na mesa e foi ao refrigerador, retirou mais duas cervejas, enchendo todos os copos, fazendo comentários, dizendo:
- Mas você ainda não mostrou como fez para que o cachorro alcançasse o equilíbrio.
- Não precisa, basta que eles saibam que consegui.
Jeremias pediu:
- Mostre, Alvarenga, mostre.
O velho saiu da cadeira e, de pé, apanhou uma garrafa vazia na mesa. Gordo, uma figura extravagante. Ficou nas pontas dos pés, colocou a garrafa no nariz e abriu os braços. Deu os primeiros passos, a garrafa balançou, ele prosseguiu, andando e andando, mostrando um certo tipo de arrogância e, surpreendentemente, de leveza.”
O personagem já tem um nome, mas um nome não é necessariamente um destino. Enquanto vai sendo criado, pelas próprias ações, pelo olhar dos outros personagens, Alvarenga vai sofrendo alterações. Percebe-se que o narrador oculto cuida de inventá-lo, quando Alvarenga aparece de novo lá pela página 73, junto aos “Soldados da Pátria por Cristo marchando para o Centro da cidade ao sol da manhã:
“Formavam um cortejo: à frente Alvarenga, o tenente, com o cachorro num braço, soprando a corneta de vez em quando, compenetrado.”
A corneta, que aparece aqui pela primeira vez, apresentada aparentemente de forma casual, depois vai evoluindo também na sua função como elemento de composição do personagem tendo, já em seguida, à página 74, reforçada a sua importância, o seu poder na caracterização:
 “Alvarenga soprou novamente a corneta, e, desta vez, o silêncio e a expectativa estancaram, por completo, a barulheira.
         A partir desse momento, Alvarenga praticamente sai de cena, os protagonistas do romance continuam a se desenvolver, a crescer, se relacionar, puxar o fio do enredo.
Apesar de já bem caracterizado até aqui, e de todo conhecimento prévio que o autor tem dos personagens com que trabalha, que costuma registrar em imagens, perfis, anotações, Carrero parece não acreditar em personagens totalmente planejados. Nos diz, em seu Os segredos da ficção, que “até as obras planejadas, palavra a palavra, podem ser surpreendidas”.
         Surpreendidas e surpreendentes, pois lá pela página 199 Alvarenga reaparece, e nesse momento o narrador organizador, mais uma vez sob o olhar de Raquel, além de prosseguir no desenvolvimento do personagem, começa a desvendar para o leitor algo da natureza da relação entre os dois:
         “Ele riu, e ela o observava através dos cílios, um riso bem próximo da gargalhada, mostrando as gengivas roxas, porque esquecera de colocar a dentadura. A boca, ela descobriu, parecia um buraco escuro, e a língua igualmente roxa dava a impressão de uma cobra que se mexia com rapidez na moita.
(...)
         “Sacolejava o corpo, rindo oco, satisfeito. Ela, apesar da estranha sensação de desmaio, acompanhou-o no riso, embora apenas os lábios se alterassem. Sentia compaixão por aquela figura medonha que se esforçava para tirá-la da agonia e imaginava como era esquisita a impulsão de dormir com um homem daquele. Mas se acostumara com ele, acostumara-se de tal forma que perdia o sono quando não aparecia, o que era muito raro. Alvarenga chegava noite alta, sentava-se num banco à frente da pensão e ficava a madrugada toda vendo-a subir e descer com vagabundos, mendigos, operários, estivadores, estudantes, nos tempos de boa freguesia, aguardando a vez. Ia na barraca da calçada oposta, tomava uma bebida e fumava um cigarro, voltava à guarda.”
         Essa relação de dependência de um pelo outro, essa função de guardião de Raquel que Alvarenga toma a si, agrega complexidade ao personagem.
Alvarenga já está bem definido, poderia nos parecer que a partir daí iria apenas cumprir o destino determinado até aqui pelo autor. Mas para Carrero, durante o processo criador, muitas alterações podem – e devem – ser feitas. Isso vai ficando claro quando, às páginas 202/203, pelos olhos de Jeremias e Sofia, o narrador vai mostrando ao leitor que ele ainda não conhece Alvarenga como pensava que conhecia:
         “Escutando os gritos, embora anunciando num megafone as prendas e ofertas da casa comercial, Alvarenga parou, com uma placa enorme dependurada no pescoço, olhou-os, a cara pintada e a roupa de palhaço ainda toda amarrotada, muito suado, protegeu-se na parede, um chapéu colorido, e desceu, esfregando as pernas, o sol reverberando nos prédios, nas árvores, nas pessoas, nos carros.”
(...)
         Sentados num banco, Alvarenga ficou entre os dois, satisfeito porque repousava, impossibilitado, porém, de passar o lenço na testa devido à pintura, e o suor escorria pelo nariz. Passando, as pessoas não se importavam com o palhaço conversando com estranhos, grave e sério. Mesmo um palhaço antimágico, antibelo e antiengraçado, balofo e suarento.
         Um palhaço grave e sério, antimágico, antibelo e antiengraçado, balofo e suarento. Que reafirma, a partir dessa imagem, de voz própria, a missão que o move:
         “- Não me acanho do trabalho de palhaço – ele disse. – O que não quero é que Raquel passe privação.”
         Por Raquel, Alvarenga se faz palhaço, cão de guarda, sempre em seu posto, sentado numa cadeira ou num banco na calçada em frente à pensão em que ela recebe os homens, vigilante.
         É com essa imagem de Alvarenga que nos despedimos dele em Maçã Agreste, comovidos com aquela figura singular, humana, complexa. Ele não é protagonista em Maçã Agreste. Não aparece mais nas 43 páginas finais do romance. Mas levamos ele conosco no espírito, imaginando o que mais esse personagem tão rico poderia ter sido, poderia ser.
         E é com a alegria de quem reencontra um amigo que se conheceu pouco mas que se gostaria de ter conhecido melhor que vinte e dois anos depois, em 2011, na abertura de Seria uma Sombria Noite Secreta, numa atmosfera de “era uma vez”, que é o tempo da ficção, nos deparamos outra vez com nosso amigo e, apesar de tantos anos passados, porque nos foi tão bem apresentado em Maçã Agreste, de pronto o reconhecemos:
         “Na noite de um dia sempre quente e quase interminável, Alvarenga estava ali ao pé da escada: na ponta dos pés, a boca aberta, foca gorda e amestrada, a corneta na mão, esperando o peixinho dourado de chocolate.”
         Nosso amigo cresceu e apareceu. Já não é mais apenas um pressentimento, um rosto nas sombras, um coadjuvante. Já tem um nome. O escritor também sentiu, feito a gente, leitor, que o personagem prometia muito mais, merecia mais espaço, e o promoveu a protagonista, para que seu aprofundamento enquanto personagem fosse viabilizado.
         Alvarenga continua ali, ao pé da escada, gordo, na ponta dos pés, a corneta na mão, durante esses anos todos guardião de Raquel. Agora, tão amestrado quanto seu cão em Maçã Agreste. Mas o autor recorre à imaginação e o cão amestrado vira foca, o focinho levantado se muda em boca aberta, o pedaço de carne usado como incentivo se transforma no peixinho dourado de chocolate.
         Carrero volta a nos advertir, em Os Segredos da Ficção, que “até que um personagem tome forma, precisamos escrever milhares de palavras, centenas de páginas”. E é com esse fôlego que o escritor se joga na empreitada, a trajetória de Alvarenga vai se estruturando lentamente, não mais apenas um nome, mas um ser. O personagem vai evoluindo, com a ajuda da memória e da observação, trabalho, muito trabalho, alguém que se destaca com traços visíveis, claros e que, por fim, ganha autonomia psicológica.
         Fica o convite aos que se sentiram provocados a conhecer melhor Alvarenga, a se debruçarem nas páginas de Maçã Agreste, onde ele nasce e dá os primeiros passos, e de Seria uma Sombria Noite Secreta, onde vão encontrar um Alvarenga ainda mais rico e complexo, na história do camelô e da prostituta Rachel, que vivem um amor desencontrado e confuso.
Em Seria uma Sombria Noite Secreta, Alvarenga repete e aprofunda “sempre a maravilha de estar prazeroso e inocente no sangue”, esboçada em Maçã Agreste. Vive para proteger Rachel. Apesar de protagonista, vive sem palavras. Rachel é quem fala por ele, que é capaz de, mesmo ao vê-la belamente nua, sofrer a maior decepção por ela não lhe oferecer um peixinho de chocolate em agradecimento a cada amante que vai à pensão após o seu toque de corneta.
São romances marcantes, fortes, cheios de uma poesia que, principalmente em Seria uma Sombria Noite Secreta, Alvarenga e Rachel nos deixam entrever nos desdobramentos de suas histórias, nas sutilezas dos recursos narrativos através dos quais Raimundo Carrero nos dá acesso ao mundo interior e caótico que forma a mente desses dois seres atormentados. Atormentados e sofridos mas profundamente humanos.



Texto publicado em Coleção Debate I - Raimundo Carrero - Academia Pernambucana de Letras - Organização Fátima Quintas - Edições Bagaço

Marcelo Pereira - Projeto vida e obra de Raimundo Carrero

Sísifo pernambucano
Marcelo Pereira

"Data de 4 de setembro de 1974 a primeira correspondência enviada por Raimundo Carrero ao escritor Odylo Costa Filho, imortal da Academia Brasileira de Letras. O iniciante autor pernambucano escreve:

'Estou mais uma vez lhe incomodando. Mas é que sou um homem um tanto nervoso e não sei ficar quieto por muito tempo. Sofro de ansiedades. Por isso não controlei o impulso de lhe escrever novamente. Como faz pouco mais de um mês que lhe entreguei os originais de minha novela: A história de Bernarda Soledade - a tigre do sertão para uma possível edição na Artenova e, como ainda não recebi resposta, gostaria de saber como é que andam as coisas.' "

"Respirando literatura e ajudando a revelar novos valores no suplemento Pernambuco, do Diário Oficial do Estado de Pernambuco, Raimundo Carrero cumpre sua sina de Sísifo pernambucano diariamente. Voltando sempre ao rés do chão da folha em branco para a escritura de um novo livro. Ao chegar eo cume e antes mesmo de colocar a obra nas mãos do leitor e sentir-se num Olimpo, momentâneo que seja, Carrero se vê impelido a começar novamente a sua tarefa sem fim de criação"

Em Coleção Debate volume I da Academia Pernambucana de Letras - Raimundo Carrero - organizado por Fátima Quintas - Edições Bagaço  

sábado, 20 de outubro de 2012

Lourival Holanda - Projeto vida e obra de Raimundo Carrero

Raimundo Carrero: a matéria, o modo, o mundo

Lourival Holanda

"Raimundo Carrero, desde há muito, vinha apontando como promessa; agora chega a um momento meridiano de sua produção. As premiações nacionais só reforçaram a aposta de quantos, daqui, acompanham seu percurso. As superstições classificatórias desnorteiam, mais que guiam, no caso Carrero."

"O universo de Raimundo Carrero é denso, dramático - pela própria matéria que escolhe. Lucilo Varejão Filho percebeu isso desde cedo: De Carrero escritor, eu diria que é dos mais densos que temos lido. E outra coisa não poderíamos esperar de um leitor constante de Dostoievski, que ele não se cansa de revisitar."

"Nos romances mais fortes, Carrero sugere: experiência erótica e a mística - intensidades extremas que se tocam. Daqueles aos quais só o infinito sacia. A paixão desvia nossos olhos da imortalidade."

Texto completo em Coleção Debate, volume I - Raimundo Carrero, da Academia Pernambucana de Letras, Organização Fátima Quintas, Edições Bagaço