Alvarenga - a construção do personagem
na obra de Raimundo Carrero
Gerusa
Leal
Uma corrente mais técnica dos estudiosos da ficção
considera que a literatura é jogo de palavras, de movimentos interiores, de
metáforas, de símbolos, o personagem seria apenas um desses elementos. Para
outra corrente, o problema central da ficção é o personagem. Não existe história sem personagem. Mas o
romance é também uma experiência de linguagem escrita, se realiza no texto.
Com esses pressupostos em vista, a idéia seria
refletir sobre a construção do personagem, pensar em como ele nasce e se
desenvolve. Tomamos Alvarenga, nascido em Maçã Agreste e protagonista de Seria
uma Sombria Noite secreta para ilustrar esse aspecto na obra de Raimundo
Carrero. Sem pretensões de defender teses, de escrever artigos, ensaios, apenas
partilhando impressões sobre a criação do personagem escolhido, que o texto de
Carrero provoca em mim.
Sobre Alvarenga, em sua gênese, já no texto impresso e
publicado, penso num rosto na sombra, que é como Carrero diz que um personagem
nasce. Nasce sem nome, porque o autor ainda está procurando a voz narrativa.
Para que tenha uma voz, necessita de uma identidade. E o nome, que pode até não
vir, que pode mudar ao longo do processo criativo, comporia, assim, uma
identidade psicológica.
A primeira vez que entrei em contato com Alvarenga foi
na leitura de Maçã Agreste, romance publicado em 1989. Lá, ocorreu-me que das
sombras de Quincas Borba pode ter começado a se esboçar o rosto do personagem.
O romance de Machado de Assis conta a história de Rubião, ingênuo rapaz que se
torna discípulo e herdeiro do filósofo Quincas Borba, personagem do romance
anterior, Memórias Póstumas de Brás Cubas e que, sendo enganado por seu amigo
capitalista Cristiano e sua esposa Sofia, paixão de Rubião, vive na pele todo o
fundamento teórico do Humanitismo, filosofia fictícia daquele filósofo.
Mas o que teria Alvarenga a ver com essa história
toda? Em Maçã Agreste, a personagem Sofia - assim como Sofia é a esposa de
Cristiano no romance de Machado -, lá na página 52, “Dirigiu-se ao atendente e pediu o romance Quincas Borba, de Machado de
Assis.”
(...)
“Agora estava disposta a lê-lo. Refeita,
sentia que não teria medo das palavras.
‘Rubião fitava a enseada – eram oito horas da manhã.
Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma
grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água
quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa. Cotejava o
passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora?
Capitalista’.” (pág. 53 de Maçã
Agreste).
Com a referência, pareceu-me, Carrero prepara o
surgimento do personagem que, na página seguinte (54), começa a chegar como uma
espécie de pressentimento da presença nascente, do ponto de vista da personagem
Sofia: “Foi quando Sofia observou que,
junto à porta, estava um homem”.
Assim, nesse momento um mero coadjuvante, um rosto nas
sombras, um homem. Apenas um homem. Que vai aos poucos ganhando contornos: “Não exatamente um homem, desses que parecem
afoitos e que nunca atravessam a meia-idade, acompanhantes ousados de
prostitutas, mas um velho.” Alvarenga começa a ser criado, de maneira
indireta, através do olhar de Sofia. Aqui já uma leve alusão, ainda velada, à
relação entre Alvarenga e Raquel: “acompanhantes
ousados de prostitutas” que só no desenvolvimento da narrativa vai sendo
desvendada.
O personagem, agora, não é mais apenas um homem, é o
acompanhante de uma prostituta e, a essa altura de sua construção enquanto
personagem, um velho: “Rigorosamente, um
velho. Vestido num terno azul, sem gravata, um bigode ralo embranquecido,
cabelos negros pintados, e bem penteados, gordo.”
Alvarenga vai se delineando. Aos poucos vai começando
a sair das sombras: “As rugas, apesar de
tudo podia ver as rugas, não escondiam a velhice.” É o olhar de Sofia
construindo, com delicadeza, a personagem, dando algumas leves pinceladas de um
perfil físico que já deixam transparecer um pouco do perfil psicológico do
homem.
Na página 55, Sofia “Lembrou-se do romance de Machado de Assis, e era como se todos ali
tivessem os olhos e os sentimentos de Rubião tentando decifrá-la”.
As reflexões de Sofia sobre Rubião ficam em suspenso
enquanto testemunha o depoimento denso e a reação de Jeremias à revelação de Raquel
de que resolveu ser prostituta. Até agora o personagem veio sendo revelado,
apresentado, por características físicas, um perfil estático, quase um retrato,
pintado por Sofia. É a idade, são as roupas, os traços fisionômicos.
Lá para a página 57, Sofia volta-se outra vez ao velho
e, sob seu olhar, o personagem começa a se movimentar, a ganhar vida: “O rapaz [Jeremias, irmão de Raquel,
amigo de Sofia] passou a mão nos olhos,
enxugando o suor que caía da testa. Repetiu o gesto, e o sorriso não se afastava
dos lábios. O que, aliás, contrastava com a face do velho que olhava um e
outro, um tanto atônito, às vezes também querendo sorrir, mascarado pela
inquietação. Sentado, as mãos sobre as coxas, baixava sempre a cabeça para
beber um gole de cerveja.”
Apenas um olhar, uma intenção de sorriso, uma
inquietação, um gesto característico, mas já se movimenta. As ações são
narradas representando comportamentos. Não são elementos isolados. O perfil
psicológico vai sendo desenhado.
Mais adiante, à página 59, diante da revelação de
Raquel: - “Quero ser prostituta” -, a
narrativa volta mais uma vez o olhar ao velho: “Quatro árvores estariam mais consoladas pelo vento. De todos, porém,
quem revelava absoluto abatimento era o velho. Enterrava a cabeça no peito, as
mãos cruzadas entre as pernas abertas, e permanecia imóvel, uma imobilidade
insólita, que significava, ao mesmo tempo, presença e distância, um objeto, ou
a aproximação mais verdadeira da dor e da compreensão, um ser vivo.”
O narrador – nesse momento, Sofia – coloca o leitor
agora mais em contato também com os sentimentos de Alvarenga, expressos nos
gestos. Um ser vivo. As palavras começam a se mover, o texto começa a traçar,
embora ainda de maneira possivelmente confusa para o leitor, a gênese do
personagem que, aqui, já pulsa. Já sofre. Já é. Já existe.
“Não se ouviam
ruídos nem a música dos cabarés. Mas o velho, saindo do torpor em que se
encontrava, num gesto que lembrou o som desafinado e grotesco de um instrumento
no meio de uma orquestra, meteu a mão no prato e retirou um grande pedaço de
queijo, enchendo a boca desajeitada e gulosamente. Mastigava com apetite e
força, deformando a boca. Não esperou sequer que a comida descesse pela
garganta, Tomou o copo de cerveja e bebeu.”
É o próprio personagem, embora ainda sob o olhar de
Sofia, lançado agora ao centro da cena, do palco, quem vai, no foco da luz, em
câmera fechada, em close, dando ordem ao disforme, ao caótico que caracteriza a
gênese de Alvarenga. Vai “saindo do torpor”. Humanizando-se, até come; e seus
gestos o vão construindo.
As frases vão se apresentando, depois os movimentos
iniciais levam ao nome.
“- Rubião tem
fome.
A gargalhada,
imensa gargalhada de Jeremias, espantou. Ele ouvia a frase de Sofia, seguida de
um arroto do velho. Sem entender a alusão ao livro de Machado, Raquel olhou
estranhamente para os dois. Mas, enquanto o velho enchia, outra vez, o copo de
cerveja, deixou o pequeno sorriso encantar os lábios. De certa forma, gostara
da expressão.
- Rubião sabe
fazer coisas.
Disse e
aproximou-se do companheiro. Sofia olhou de viés para Jeremias, lembrando-se de
Rubião, Cristiano Palha, Freitas e Carlos Maria e, sobretudo, da outra Sofia [a de Quincas Borba]. Que haveria ela de pensar num instante daquele? E o velho continuava,
vorazmente, a devorar o queijo e a beber a cerveja.
- Vamos,
Rubião, mostre a eles o que sabe fazer.
Ele levantou
o rosto gordo, com o bigode sujo de espumas, imitando um sorriso, limpando os
lábios com a língua:
- Você fala
comigo?
Raquel
colocou a mão no seu ombro:
- Com quem
haveria de ser?
- Meu nome é
Alvarenga. Por que me chamam assim?”
Aqui fica a pergunta, lançada ao ar, para os demais
personagens - e para o leitor. Nesse trecho, também, a relação do personagem
com Raquel vai se modificando ao olhar do leitor. Não mais apenas um
acompanhante ousado de prostitutas. Mas um companheiro de Raquel.
O narrador oculto, organizador vai, por meio do
diálogo, fazendo um uso sofisticado das marcações para ir acrescentando traços
ao perfil físico do personagem - dando-lhe um bigode, por exemplo -,
construindo sua identidade. É o próprio personagem quem afirma seu nome,
começando, assim, a destacar-se das sombras do Rubião, de Quincas Borba, e se
apresentando como um outro, que os demais personagens ainda estão começando a
conhecer – assim como o leitor.
É Raquel quem, à página 60, joga Alvarenga outra vez,
dessa vez quase literalmente, no palco, e lhe pede que se apresente, que se
defina, saia da ambiguidade que os dois nomes criam:
“- Alvarenga
ou Rubião, mostre a eles suas habilidades. O velho também riu, riu e repetiu a
palavra nova duas ou três vezes, apenas para ele. Contou que vivia, sozinho,
com um cachorro no quarto de pensão. Isto é, precisava escondê-lo porque a
hospedeira não gostava de animais nos aposentos. Sobretudo um cachorro, que
colocava em risco a saúde dos outros hóspedes. O bicho era bem-comportado, não
latia, não grunhia, obedecendo a todas as ordens do dono.”
Sofia e Jeremias contribuem também com seu olhar para
ir plasmando Alvarenga para o leitor, de maneira indireta, o narrador colado ao
ponto de vista dos personagens:
“Enquanto ele
falava, Raquel serviu mais uma cerveja e mais queijo, mesmo sabendo que estava
perdendo sua própria alimentação. Sofia e Jeremias esqueceram o enfado,
interessados na figura ali à frente, conversando e conversando, ganhando
animação, mesmo que os gestos fossem deselegantes.”
As características do personagem vão sendo melhor
definidas, ele vai “ganhando animação, mesmo que os gestos fossem
deselegantes”. O “mesmo que”, aqui, me chega como recurso narrativo, para não
lançar luz demais, não ofuscar o leitor, não tirar seu espaço de cúmplice na
construção, pois o personagem ganha animação não “mesmo que” mas “inclusive e principalmente” por seus gestos
deselegantes.
Alvarenga já tem nome, perfil físico e o narrador,
ainda de forma indireta, pelos olhares dos outros três personagens, vai
estabelecendo também um perfil psicológico. Já não é uma idéia nebulosa, um
velho, um companheiro de Raquel. Trata-se de Alvarenga. Um ser singular, único
feito cada um de nós.
Outro trecho da narrativa, à página 61, coloca o
leitor em contato com a gênese de gestos que vão caracterizar Alvarenga em Maçã Agreste, quando
ainda é coadjuvante, e se aprofundar em Seria uma Sombria Noite Secreta, quando
se transforma em protagonista. Trata-se da cena com o personagem fazendo a
performance de como adestrava o cachorro com quem vivia no quarto de pensão:
“Alvarenga
balançou a cabeça. O pobre [o
cachorro] entendia, mas a princípio não
mostrou habilidades. Queria que o bicho ficasse em pé nas patas traseiras, o
focinho levantado. Começava aí o exercício. Demonstrava, faça assim e assim.
Repetindo os gestos, um bailarino balofo, o velho caminhava nas pontas dos pés
pelo quarto. Assim, faça assim, repetia. O animal não saía do lugar,
espiando-o.”
(...)
Mesmo depois
de rebeldia e persistência o cachorro conseguiu, ainda que canhestramente,
andar nas patas traseiras. No entanto, para que ele ficasse com o focinho
levantado, Alvarenga precisava oferecer-lhe um pedaço de carne, pendurando-a
num cordão e, suspensa, obrigando-o a abocanhá-la.”
(...)
Raquel bateu
com a mão na mesa e foi ao refrigerador, retirou mais duas cervejas, enchendo
todos os copos, fazendo comentários, dizendo:
- Mas você
ainda não mostrou como fez para que o cachorro alcançasse o equilíbrio.
- Não
precisa, basta que eles saibam que consegui.
Jeremias
pediu:
- Mostre,
Alvarenga, mostre.
O velho saiu
da cadeira e, de pé, apanhou uma garrafa vazia na mesa. Gordo, uma figura
extravagante. Ficou nas pontas dos pés, colocou a garrafa no nariz e abriu os
braços. Deu os primeiros passos, a garrafa balançou, ele prosseguiu, andando e
andando, mostrando um certo tipo de arrogância e, surpreendentemente, de
leveza.”
O personagem já tem um nome, mas um nome não é
necessariamente um destino. Enquanto vai sendo criado, pelas próprias ações,
pelo olhar dos outros personagens, Alvarenga vai sofrendo alterações.
Percebe-se que o narrador oculto cuida de inventá-lo, quando Alvarenga aparece
de novo lá pela página 73, junto aos “Soldados
da Pátria por Cristo marchando para o Centro da cidade ao sol da manhã:
“Formavam um
cortejo: à frente Alvarenga, o tenente, com o cachorro num braço, soprando a
corneta de vez em quando, compenetrado.”
A corneta, que aparece aqui pela primeira vez,
apresentada aparentemente de forma casual, depois vai evoluindo também na sua
função como elemento de composição do personagem tendo, já em seguida, à página
74, reforçada a sua importância, o seu poder na caracterização:
“Alvarenga soprou novamente a corneta, e,
desta vez, o silêncio e a expectativa estancaram, por completo, a barulheira.
A partir desse momento, Alvarenga
praticamente sai de cena, os protagonistas do romance continuam a se
desenvolver, a crescer, se relacionar, puxar o fio do enredo.
Apesar de já bem caracterizado até aqui, e de todo
conhecimento prévio que o autor tem dos personagens com que trabalha, que
costuma registrar em imagens, perfis, anotações, Carrero parece não acreditar
em personagens totalmente planejados. Nos diz, em seu Os segredos da ficção,
que “até as obras planejadas, palavra a palavra, podem ser surpreendidas”.
Surpreendidas e surpreendentes, pois lá
pela página 199 Alvarenga reaparece, e nesse momento o narrador organizador,
mais uma vez sob o olhar de Raquel, além de prosseguir no desenvolvimento do
personagem, começa a desvendar para o leitor algo da natureza da relação entre
os dois:
“Ele
riu, e ela o observava através dos cílios, um riso bem próximo da gargalhada,
mostrando as gengivas roxas, porque esquecera de colocar a dentadura. A boca,
ela descobriu, parecia um buraco escuro, e a língua igualmente roxa dava a
impressão de uma cobra que se mexia com rapidez na moita.
(...)
“Sacolejava
o corpo, rindo oco, satisfeito. Ela, apesar da estranha sensação de desmaio,
acompanhou-o no riso, embora apenas os lábios se alterassem. Sentia compaixão
por aquela figura medonha que se esforçava para tirá-la da agonia e imaginava
como era esquisita a impulsão de dormir com um homem daquele. Mas se acostumara
com ele, acostumara-se de tal forma que perdia o sono quando não aparecia, o
que era muito raro. Alvarenga chegava noite alta, sentava-se num banco à frente
da pensão e ficava a madrugada toda vendo-a subir e descer com vagabundos,
mendigos, operários, estivadores, estudantes, nos tempos de boa freguesia,
aguardando a vez. Ia na barraca da calçada oposta, tomava uma bebida e fumava
um cigarro, voltava à guarda.”
Essa relação de dependência de um pelo
outro, essa função de guardião de Raquel que Alvarenga toma a si, agrega
complexidade ao personagem.
Alvarenga já está bem definido, poderia nos parecer
que a partir daí iria apenas cumprir o destino determinado até aqui pelo autor.
Mas para Carrero, durante o processo criador, muitas alterações podem – e devem
– ser feitas. Isso vai ficando claro quando, às páginas 202/203, pelos olhos de
Jeremias e Sofia, o narrador vai mostrando ao leitor que ele ainda não conhece
Alvarenga como pensava que conhecia:
“Escutando
os gritos, embora anunciando num megafone as prendas e ofertas da casa
comercial, Alvarenga parou, com uma placa enorme dependurada no pescoço,
olhou-os, a cara pintada e a roupa de palhaço ainda toda amarrotada, muito
suado, protegeu-se na parede, um chapéu colorido, e desceu, esfregando as
pernas, o sol reverberando nos prédios, nas árvores, nas pessoas, nos carros.”
(...)
Sentados
num banco, Alvarenga ficou entre os dois, satisfeito porque repousava,
impossibilitado, porém, de passar o lenço na testa devido à pintura, e o suor
escorria pelo nariz. Passando, as pessoas não se importavam com o palhaço
conversando com estranhos, grave e sério. Mesmo um palhaço antimágico, antibelo
e antiengraçado, balofo e suarento.
Um palhaço grave e sério, antimágico,
antibelo e antiengraçado, balofo e suarento. Que reafirma, a partir dessa
imagem, de voz própria, a missão que o move:
“-
Não me acanho do trabalho de palhaço – ele disse. – O que não quero é que
Raquel passe privação.”
Por Raquel, Alvarenga se faz palhaço,
cão de guarda, sempre em seu posto, sentado numa cadeira ou num banco na
calçada em frente à pensão em que ela recebe os homens, vigilante.
É com essa imagem de Alvarenga que nos
despedimos dele em Maçã Agreste, comovidos com aquela figura singular, humana,
complexa. Ele não é protagonista em Maçã Agreste. Não aparece mais nas 43
páginas finais do romance. Mas levamos ele conosco no espírito, imaginando o
que mais esse personagem tão rico poderia ter sido, poderia ser.
E é com a alegria de quem reencontra um
amigo que se conheceu pouco mas que se gostaria de ter conhecido melhor que
vinte e dois anos depois, em 2011, na abertura de Seria uma Sombria Noite
Secreta, numa atmosfera de “era uma vez”, que é o tempo da ficção, nos
deparamos outra vez com nosso amigo e, apesar de tantos anos passados, porque
nos foi tão bem apresentado em Maçã Agreste, de pronto o reconhecemos:
“Na
noite de um dia sempre quente e quase interminável, Alvarenga estava ali ao pé
da escada: na ponta dos pés, a boca aberta, foca gorda e amestrada, a corneta
na mão, esperando o peixinho dourado de chocolate.”
Nosso amigo cresceu e apareceu. Já não
é mais apenas um pressentimento, um rosto nas sombras, um coadjuvante. Já tem
um nome. O escritor também sentiu, feito a gente, leitor, que o personagem
prometia muito mais, merecia mais espaço, e o promoveu a protagonista, para que
seu aprofundamento enquanto personagem fosse viabilizado.
Alvarenga continua ali, ao pé da
escada, gordo, na ponta dos pés, a corneta na mão, durante esses anos todos
guardião de Raquel. Agora, tão amestrado quanto seu cão em Maçã Agreste. Mas o
autor recorre à imaginação e o cão amestrado vira foca, o focinho levantado se
muda em boca aberta, o pedaço de carne usado como incentivo se transforma no
peixinho dourado de chocolate.
Carrero volta a nos advertir, em Os
Segredos da Ficção, que “até que um personagem tome forma, precisamos escrever
milhares de palavras, centenas de páginas”. E é com esse fôlego que o escritor
se joga na empreitada, a trajetória de Alvarenga vai se estruturando
lentamente, não mais apenas um nome, mas um ser. O personagem vai evoluindo,
com a ajuda da memória e da observação, trabalho, muito trabalho, alguém que se
destaca com traços visíveis, claros e que, por fim, ganha autonomia
psicológica.
Fica o convite aos que se sentiram provocados
a conhecer melhor Alvarenga, a se debruçarem nas páginas de Maçã Agreste, onde
ele nasce e dá os primeiros passos, e de Seria uma Sombria Noite Secreta, onde
vão encontrar um Alvarenga ainda mais rico e complexo, na história do camelô e
da prostituta Rachel, que vivem um amor desencontrado e confuso.
Em Seria uma Sombria Noite Secreta, Alvarenga repete e
aprofunda “sempre a maravilha de estar prazeroso e inocente no sangue”,
esboçada em Maçã Agreste. Vive para proteger Rachel. Apesar de protagonista,
vive sem palavras. Rachel é quem fala por ele, que é capaz de, mesmo ao vê-la
belamente nua, sofrer a maior decepção por ela não lhe oferecer um peixinho de
chocolate em agradecimento a cada amante que vai à pensão após o seu toque de
corneta.
São romances marcantes, fortes, cheios de uma poesia
que, principalmente em Seria uma Sombria Noite Secreta, Alvarenga e Rachel nos
deixam entrever nos desdobramentos de suas histórias, nas sutilezas dos
recursos narrativos através dos quais Raimundo Carrero nos dá acesso ao mundo
interior e caótico que forma a mente desses dois seres atormentados.
Atormentados e sofridos mas profundamente humanos.
Texto publicado em Coleção Debate I - Raimundo Carrero - Academia Pernambucana de Letras - Organização Fátima Quintas - Edições Bagaço
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