Na ponta dos dedos
Gerusa Leal
Cabeça erguida, nariz
empinado, não tem satisfações a dar aos cachaceiros no bar da esquina. Nem às
vizinhas espiando pelas brechas das janelas que escuta fechar quando deseja boa
noite dizendo-lhes o nome.
Atravessou o pontilhão
sobre o riacho quase seco que corta a mata rala por trás do barraco. De taipa,
dois aposentos; parecia que desabava se batessem a porta com mais força.
Escuro. Levantou o capacho, a chave estava lá. Entrou tateando as paredes.
Achou o candeeiro, ainda um pouco de querosene; o fósforo no lugar de sempre.
Precisava de um banho. O
banheiro, nos fundos do barraco, um cubículo improvisado com tábuas catadas em
restos de construção. O chuveiro, um latão de tinta que encheu com água tirada
do poço com o balde. Puxando um barbante, virava despejando em outra lata cheia
de furos no fundo abertos com prego e martelo, improviso do irmão enquanto
ainda morava lá. Sentiu a água fria escorrendo sobre as roupas suadas e fedidas como se fosse um bálsamo.
Foi tirando peça por peça
com a ponta dos dedos. Pegou o pedaço de sabão amarelo numa das brechas das
tábuas, esfregou, agachou-se, enxaguou na água da bacia. Torceu, pendurou tudo
na corda.
A noite era de lua. O
barraco era o último da rua antes do rio, ficava isolado por um terreno baldio
cheio de bananeiras. Os galhos secos dos arbustos perto do riacho não se
moviam, a estiagem deixava o tempo abafado.
Puxou o barbante deixando
a água escorrer sobre o corpo nu. Esfregava com
força até a pele arder. Voltou para dentro do
barraco se enxugando com a toalha. Largou o corpo no cobertor puído sobre o sofá de onde pulava
uma mola. O silêncio só não era maior porque depois que se aquietara o grilo
voltou a cantar.
Quando partiu, não pensou
que um dia voltasse. Muito menos assim. Nem
que sentisse falta do que deixou para trás.
Estremeceu lembrando o
suíço que lhe confiscou o passaporte e deixou trancada junto com as outras,
quase sem comida. Ele sorria enquanto lhe sussurrava ao ouvido sei que gosta
disso mas precisa aprender a fazer bem feito eu estou aqui para ensinar.
A proposta de trabalho
era irrecusável. Arabela teria por volta de quinze, dezesseis anos, se tanto. O
registro de nascimento dizia que eram dezoito. Ia acontecer no exterior, ser
dançarina, quem sabe com um pouco de sorte até modelo. Desde criança treinava
caras e bocas na frente do espelho manchado e opaco na porta do guarda-roupa da
mãe. Que havia falecido enquanto ela estava fora. Tinha dado a maior força para
que aceitasse. Afinal que futuro ela ia ter ali, naquele fim de mundo, no meio
de ignorantes que não percebiam o talento da moça. Por despeito ou cobiça a
comiam com os olhos.
Foi a amiga que a indicou.
Não comentou detalhes. Pediu uma foto, que seguiu pelo correio. O suíço chegou
no carrão, quando estacionou na porta o lugar inteiro já sabia, o motorista
tinha parado para perguntar onde ela morava. Cercou-a de promessas, e ela foi.
Era obrigada a prestar
serviços por dezesseis a dezoito horas por dia. Acabou, como as outras, nas
drogas.
De repente uma paz, um
alívio ali sozinha. Um instante de culpa por não estar sentindo a falta da mãe.
Entrou no quarto, abriu a
porta do guarda-roupa presa apenas por uma dobradiça,
aprumou e se olhou no espelho. Bonita.
Não, ela tinha entendido
mal, não era bem isso, se estava ali era porque imaginava que Arabela tivesse
muita experiência e que poderia lhe ensinar a fazer coisas que tirassem o
marido do caso que estava tendo com uma colega do escritório, mas havia pensado
só numa conversa.
E o outro que depois de
fazer de tudo com ela veio contar que acabou o noivado de seis meses porque a
noiva tinha pedido para que ele a chamasse de putinha, lhe desse uns tapas,
pegasse forte, crente que ele ia se amarrar. Mas ele ficou chocado com a
iniciativa e gritou que não admitia que a mãe dos filhos dele parecesse uma
puta. Cafajestes.
Uma puta. Respirou fundo,
cansada. Queria ser prostituta. Puta, não. Esse não é um desejo que se admita
nem para si mesma, mas já não tinha porque esconder dela própria. Queria ser
prostituta. Livre. Ser dançarina, modelo. Ganhar o próprio sustento e não
precisar vender o corpo feito as putas. Só queria se entregar sem regras, sem
condições, simplesmente se oferecer.
Acariciou os seios,
deslizou as mãos sobre o ventre, alisou as coxas. Passou a ponta dos dedos de
leve sobre os pelos entre as pernas.
Só queria ser dona do
próprio nariz. Que vantagem havia em ser prostituta se para isso acabava
virando escrava? Puta.
No início não havia maldade,
só prazer. Do olhar, do sorriso, do toque. A mãe era quem a despertava para a
malícia, quando lhe mandava para dentro de casa se jogava bola de gude agachada
com mais três ou quatro meninos, quando lhe dizia para sentar direito, puxar a
saia, não sorrir tanto.
Também não era bem assim
essa história de que puta não goza. Ela às vezes gozava, às vezes não. Mas o
grande prazer era o de não ser mulher de um homem só.
E eles queriam que ela
falasse disso quando a interrogaram depois que a polícia desmantelou o
cativeiro. Eles jamais entenderiam.
Vestiu a calcinha e a
camiseta. Estava com fome. Achou uma bermuda, calçou a sandália e retornou ao
centro. No bar, pediu um café com leite, pão com manteiga. O cara na última
mesa levantou e se aproximou do balcão. Ela sorriu. Subiram para um dos
cômodos.
Quando desceu, pediu uma
cachaça. Bebeu de uma vez, sem olhar ao redor retomou o caminho de casa.
Àquela hora as ruas
estavam vazias. Aprumava o corpo. Mantinha a pose.
Às vezes acordava sem
saber onde estava. Adormecia e as imagens se misturavam ela dançando no palco
desfilando na daspu jogando bola de gude o sorriso cínico do suíço o prazer a
dor os homens se sucedendo na cama a mãe morta o delegado o banho no quintal o
cheiro na ponta dos dedos o cara no bar a caminhada solitária pelas ruas
desertas aquilo não era hora de moça direita andar fora de casa.
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