domingo, 31 de julho de 2011

Notas Cotidianas e Literárias X

UM POEMA DE GERUSA LEAL

Em Versilêncios (2008), Gerusa Leal pratica uma escrita delicada e sem alarde, mas também sem resignação nem aceitação cega do que a rodeia. Vive e exprime situações cotidianas em sua inteireza ou parcialidade. Questiona os atos simples da vida para melhor compreendê-los. Interage com o ambiente exterior através da poesia que enfoca ângulos diferenciados de visada na percepção de seres e objetos, na fatura que passa a limpo como espetáculos do mundo um vaso de flores, uma laje de prédio, uma vizinha próxima e ao mesmo tempo distanciada. E isto se verifica tanto naqueles dias em que nada dá certo e é preciso esperar pelos instantes seguintes em que porventura o mundo e as idéias retornem ao seu imprevisível lugar. Não intenta estabelecer, nos seus poemas, nenhum ciclo novidadeiro ou fluxo inventivo impossível de ser conseguido por agora. É um fato que, na atualidade, escasseiam materiais concernentes e renovados para isso, no caos de uma grande produção que vem permeando a poesia ao longo dos séculos. Sem se abater, ela trabalha com afinco os materiais líricos que se mostram à mão. Por isso, dirá no poema “Escrevedor”:

não escrevo o que não sinto
amadora que sou
sinto o que não escrevo
jeito de driblar a dor

escrevo o que não sinto
salvo a vida
não sinto o que não escrevo
nem percebo que vivi

O poema não partilha ilusões, falseadas às vezes, ou assimiladas cotidianamente pela sina do ser poeta. Vislumbra a condição e o fingimento pessoano, que anula a dor suposta e a real, e, por uma ironia suprema e incisiva, passa a reafirmar sensivelmente o amor. Assim, no estrato secular e fragmentário das formas e sentidos, Gerusa Leal procura descartar discretamente a “dor”. Elege a “vida” antes da escrita do que não se sente. E assume o silêncio do não escrever que não se amplie em vida, que não renda homenagem ao milagre de se estar vivo.



http://omundocircundante.blogspot.com/2010/02/notas-cotidianas-e-literarias-x.html

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