quarta-feira, 20 de julho de 2011

O susto chega no calor da tarde (ou no frescor da manhã?)

por Gerusa Leal
        “Observo seu esforço, pois a doença ainda o sobrecarrega com seus ásperos vestígios. E sua coragem, atributo que sempre o distinguiu, não só como homem, mas também como escritor.” Assim inicia José Castello, em seu blog A literatura na poltrona, relato sobre seu reencontro com Carrero, em mesa de abertura do Laboratório de Autoria Ascenso Ferreira, no SESC Santa Rita, no final de abril, uns seis meses após o acidente vascular cerebral que o amigo sofrera.
        A conversa era sobre Literatura e Realidade. Em cinco de maio, Castello nos dizia: “Acompanho a fala de meu amigo e percebo, de repente, que sua doença - afora todas as contingências médicas, que são reais - é um sintoma literário. A escrita de Carrero força com fúria as fronteiras da literatura, desferindo golpes duros na própria cauda (como "pedras que se consomem").”
        Diante desse comentário de Castello, e ao iniciar a leitura do romance SERIA UMA SOMBRIA NOITE SECRETA - frase de Retrato do Artista quando Jovem, que Carrero emprestou de Joyce, para título e início da epígrafe da nova obra – me chega com um certo sabor de biografia às avessas, denunciando o quanto de sua alma, de seu sangue e de seus nervos Carrero doou ao apaixonante Alvarenga, protagonista dessa sua mais recente narrativa publicada, e que será lançada dia 21 na Livraria da Jaqueira.
        E aí, tanta razão tem Castello, fica muito difícil separar o homem do escritor (a literatura da realidade). Para Alvarenga, o susto chega no calor da tarde. Para Carrero, foi no início do dia ou, como diz meu amigo, Às vésperas do sol. Um susto em que talvez a ficha só tenha caído depois. Diria Alvarenga: “Porque só depois é que a gente percebe o perigo que correu.”
        Não dá pra deixar de pensar que a voltagem de investimento no protagonista do romance foi tão alta que em alguns momentos o narrador parecia estar escrevendo uma biografia antecipada do autor. Alvarenga, também “Ele se viu sem controle. A primeira sensação era de que estava perdendo o controle do corpo. Tem isso? Tem isso mesmo de perder o controle do corpo? Uma coisa por demais esquisita.”
        Uma coisa por demais esquisita, amigo Carrero. A vida e a literatura, irmãs de sangue, têm coisas muito esquisitas. E Alvarenga talvez seja um personagem tão apaixonante, apesar de tão próximo da gente de maneiras que a gente não consegue explicar racionalmente, porque mesmo não sendo irmão de pai e mãe, é seu irmão de sangue. Pulsa em suas veias o sangue que você lhe doou, em transfusão que, diria Castello, talvez quase lhe custou a própria vida.
        Mas não vamos falar mais de Carrero, nosso amigo querido, mestre e exemplo na literatura, e de vida, de força, de determinação, de entusiasmo e de um humor que faz rir à própria morte. Pois Carrero nós já conhecemos e amamos. Vamos falar e ir atrás de conhecer, viver, rir e chorar com Alvarenga, que foi sorveteiro, sim. Que toca corneta, sim. Que nutre, sim, um afeto de total doação e abnegação por Rachel. Mas que é tão único, e tão vivo, que apesar de toda falta de capacidade de se expressar, e até de se entender a si próprio, nos encanta com sua humanidade.
        Alvarenga que “não sabia fazer nada de propósito”. Alvarenga em quem, apesar de toda bizarrice, “Há algo de reverente.” Que nunca decorou o nome da mãe. Que cresceu com aqueles sapatos e aquelas roupas tão maiores do que ele, e “de não trocar nunca.” A quem qualquer um teria “imensa dificuldade para olhá-lo, aquele menino na sua pureza, na sua elegância.”
        Alvarenga nos apaixona tanto e nos convence tanto com a sua realidade, sua autonomia, mesmo tão dependente de Rachel, que quase esquecemos que não estamos bem apenas olhando pelo buraco da fechadura e enxergando gente de verdade existindo. Que há ali um autor calejado, em todos os sentidos, que sofisticadamente entrega a narrativa à personagem e pede: “Você conta por mim, Rachel, conta?” E a quem Rachel responde: “para evitar sua exposição, por orgulho e vaidade, eu conto. O que você faz é organizar. Está bem?” Ou terá sido a Alvarenga que Rachel respondeu?
        E assim Rachel, quem sabe se “por orgulho e vaidade”, acredita que é ela, e só ela, quem conta a história. A história de Alvarenga. Contada na verdade pelo grande romancista que, apesar de uma obra tão madura e consistente, apesar do total domínio técnico dos recursos de criação, continua em busca da invenção, da superação, de forma apaixonada, mesmo com todas as angústias desse processo que muitas vezes, lá pelo meio da obra deve pensar: “Não devia ter chegado até ali, não devia, e agora não sabia mais andar, e tinha que atravessar a ponte, tinha de continuar andando, ah, meu Deus, para que foi começar, por que fizera a loucura de chegar até ali?” Ou teria sido Alvarenga quem pensou?
        O escritor, em Seria uma sombria noite secreta, nos conta uma outra história incomum, com personagens absurdamente cativantes, envolve-nos, seduz-nos com as personalidades dos dois, com seus jeitos de serem gente embora, como diria ainda Castello, “insubordinados, que não se submetem a regras e que agarram a vida com desespero, mas com fé.”
        E às vezes Alvarenga pensa ah, “Nunca escolheria uma ponte se lhe fosse dado escolher.” Ainda bem que não lhe é dado, meu amigo Carrero, para a riqueza da literatura, e para sorte nossa, que saímos sempre outros dos mergulhos em seus romances. Mas chega de falar em Carrero, vamos atrás de Alvarenga pois “Agora o olho era ele.” Vamos nos empapuçar de boa literatura, escrita por quem vive a literatura feito a vida pois, sem isso, “A vida é tão pouco, não é?”

Serviço:

Sessão de autógrafos: 21 de julho, 19 horas, na Livraria Jaqueira - Recife/PE

http://www.interpoetica.com/site/index.php?/O-susto-chega-no-calor-da-tarde-ou-no-frescor-da-manhã.html

2 comentários:

Ana Brito disse...

Gerusa querida, tenho lido muitos comentários sobre o Mestre Carrero na internet. Um passatempo nos finais de semana de quem esta' agora tao longe e com tantas saudades de tudo e todos dai, e que já leu tudo que trouxe em português. E de propósito tinha evitado os blogs e comentários dos oficineiros. Mas revisitando seu blog me deparo com este seu belíssimo e profundo texto sobre o AVC de Carrero. Fiquei muito emocionada, e destaco a passagem "A história de Alvarenga. Contada na verdade pelo grande romancista que, apesar de uma obra tão madura e consistente, apesar do total domínio técnico dos recursos de criação, continua em busca da invenção, da superação, de forma apaixonada, mesmo com todas as angústias desse processo..." como fantástica. E' isso mesmo, voce conseguiu traduzir de uma forma tao realista, como apenas uma grande conhecedora da obra de um mestre faria. Parabéns. Obrigada pelo texto. Gosto muito, mas muito mesmo, de ler também seus poemas. Um grande abraço

Gerusa Leal disse...

Ana, minha querida, que comentário mais gratificante. Muito obrigada, pela visita, pela leitura, pelas boas palavras. Na verdade, acho que nesse artigo minha pena foi tão guiada pelo conhecimento da obra de Carrero quanto pela amizade. Um grande e fraternal abraço, Ana, e seja sempre-bem vinda.