sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Os brincos prateados

Arrumava os cabelos com as mãos onde quer que estivesse, sem precisar de espelho. Fizera isso vezes sem conta. A vida não contribuía para amenizar os traços.
Tivesse o cuidado de não dar moleza desde o início, não estava passando por tanta decepção. Sim, pode-se perder o controle do lance, ser trapaceada e levar uma rasteira. Dava lá as escorregadas dele, ela sabia, sempre tinha uma explicação você que é meu amor, ela precisava que a convencesse. Não era mais menina, ralando daquele jeito, chegando em casa à noite no bagaço. Em vez de chorar, devia era soltar foguete.
Retocou o batom, também sem espelho, contornando os lábios com precisão.
Calma. Tenho que ter calma. Adianta me descabelar? Por que não escutei a voz da razão? Teria percebido que era sorte demais para ser verdade. Tem cabimento acreditar que um rapagão daqueles ficasse com ela muito tempo? Uma tonta, é o que foi. Ainda por cima deixar de se cuidar para vestir ele com roupa de marca, fazer prestação pra financiar o carro usado que tanto queria e botar no nome dele, onde já se viu? A amiga alertou, e daí? E daí que para seu azar apaixonou-se. Toda a sensatez foi parar na lata do lixo. Na lata de lixo.
Enxugava as mãos no vestido, suadas feito quando era adolescente.
Isso pode acontecer com qualquer uma.
Andava de um lado para o outro na sala. Na imaginação o rosto do amante, cara lisa, barba feita, no meio do mundo.
Sabia quando estava chegando pelo barulho do elevador, ficava de pé olhando a porta, aguardando que ele abrisse. Entrava, pegava pela cintura, virava de costas, empurrava para o sofá e ali mesmo a possuía, ela de quatro. Como uma cadela.
Escurecia lá fora, o ar frio do inverno entrando pelo apartamento.
O cordão dourado com a letra M, que usava sempre, era fantasia, imitação barata. Único presente que lhe dera em três anos; bem mais vagabundo que o par de brincos prateados com pedrinhas brilhantes que encontrara na gaveta de cuecas e meias, por baixo de tudo, bem lá no fundo, comprado com o dinheiro dela para a outra: sacudiu na cara dele, aos gritos, como se isso resolvesse alguma coisa.
Ele negou, era surpresa, para comemorar a data em que se mudou para a casa dela, mas não faz mal, e adulou, e fez carinho, levou pra cama, e ela se acalmou. Colocou os brincos.
Dia seguinte fazia quatro anos, um sábado. Culpada por haver desconfiado dele, comprou dois metros de viscose à prestação, abriu a máquina de costura, pegou a tesoura grande para cortar a camisa. Com sorte estaria pronta antes que ele voltasse da pelada com os amigos.
Cedo ainda, nem prestou atenção no barulho do elevador abrindo. Tocaram a campainha, não podia ser ele. Deu de cara com a ninfeta dizendo para ela passar os brincos, que não engolia essa de ter paciência e abrir mão para uma velha enrugada, pelancuda, só porque ele tinha pena.
Bateu a porta, sentada na sala não escutava nada, nem os berros da outra de isso não vai ficar assim, até que tudo ficou silêncio, olhou ao redor, a máquina aberta, o tecido na mesa, devia ser intriga da garota, ele não ia dizer uma coisa dessas dela, de que jeito a outra sabia dos brincos?, dizia para si mesma que não era nada daquilo, haveria explicação, sempre tinha uma, a visão dele abraçado com a ninfeta, a voz dentro da cabeça sussurrando no ouvido da outra você é que é meu amor, imagina se tem comparação com aquela velha enrugada, pelancuda, é que ela é tão sozinha, tenho dó, paciência que vou dar um jeito.
Dar um jeito.
Na delegacia, arrumava os cabelos com as mãos, retocou o batom, se deixou conduzir para a cela. Com a roupa do corpo, de chinelos, usando os brincos prateados.

………………………
O conto Os brincos prateados foi classificado em primeiro lugar entre os 10 melhores para compor o livro do Prêmio Maximiano Campos de Literatura 2006, selecionados pelo escritor, crítico e professor da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE Luis Carlos Monteiro. O conto foi publicado também na antologia Panorâmica do conto em Pernambuco, em 2007, e na edição de nº 23, de 4 de setembro de 2008, da revista eletrônica Histórias Possíveis.

4 comentários:

Fernando Farias disse...

Ador este conto.
Teu blog está muito bom.
Viajo nele.
Sucessos.
Fernando Farias

Gerusa Leal disse...

Obrigada, Fernando.
Abraço
Gerusa

Unknown disse...

Quem de nós ja não usou bricos prateados - com esperança de reluzir, ou mesmo de existir.
Parabéns Gerusa! Amei o conto.
Abraços!
Verônica Aroucha

Gerusa Leal disse...

Obrigada, Verônica, pela visita e pelo comentário.
Abraço
Gerusa